top of page

Asas



Não sou pássaro, mas nasci com asas. Estou mais para lagarta, que virou borboleta.


Somos raras, as mulheres aladas. Nas gerações passadas, dava-se para contar nos dedos quantas cresceram cheias de penas. Agora, no entanto, estamos nos tornando mais comuns, o que assusta o mundo.


Não, o mundo, não. O mundo, que possui esse vasto céu azul, cinza, laranja, rosa ou negro, ele nos aceita. Nos convida a explorar, a nos aventurar, a irmos cada vez mais longe, mais alto, em rumo ao desconhecido.


São as pessoas que não nos reconhecem. Ao nos ver nas ruas, chamam- nos indecentes. Olham sem pudor, comentam, apontam. Nos tocam, dizendo que foi “sem querer", levando consigo nossas penas. Parece algo tão pequenino, não é? Mas foi um pedaço de mim, e ele nunca vai voltar.


Quando voamos, os escandalizamos. Eles não aceitam o que é diferente. Não compreendem que tudo muda. Não somos assim tão divergentes, mas qualquer diferença existente faz com que se retraiam, que preguem "a volta do bom e velho tradicional”, quando nenhuma mulher tinha asas.


Nossa liberdade os assusta.

Com a ignorância e o medo ao seu lado, nos subjugaram. Sabem que

somente nossas pernas não são suficientes para fugir, então nos meteram em criações horrendas: pequenas gaiolas, que nos prendem somente da cintura para cima. É prático. Assim, eles têm acesso ao que querem e nós não podemos fugir.


Correntes envolvem nossas asas, os grilhões presos ao teto da gaiola. Ela é extremamente pesada, feita de metal; mesmo em contato com a água, não enferruja. É um metal composto de ódio e intolerância, tão fortes que rejeitam até a própria natureza das coisas.


Ela pesa sobre meus ombros, faz com que minha cabeça esteja sempre abaixada.


Submissa.


Tentaram cortar as pontas das asas, assim como pássaros em zoológicos, mas não foi suficiente. A imagem continuava a mesma, ainda que na prática já não conseguíssemos mais voar. Precisavam de algo que mostrasse a todos que fomos derrotadas.


O que eles não entendem é que isso não muda nada.

Pego o cadeado de minha gaiola nas mãos, e sorrio, sem que ninguém veja. É difícil alcançá-lo.


Nossas ancestrais não tinham asas. Essas cresceram devido a uma luta que passa de geração em geração, uma dor e força de vontade que transcendem o tempo, e que existirão enquanto quem quer nos dominar também existir.


E se essa dominação crescer em força, a batalha daquelas que sucumbiram se torna nossa nova evolução. Da próxima vez, as asas podem ser invisíveis. Ou podemos nos tornar leves como o ar. Quem sabe?


Claro que eles não se dão conta disso. Tratam a brutalidade como prêmio, aproveitam o pequeno momento de vitória e tentam se convencer de que finalmente nos calaram, que nunca mais voltaremos a nos rebelar.


Demorou um tempo, mas enfim eu entendi. Eles nunca terão sucesso, e o motivo está na minha mão, justamente no cadeado. Em seu centro, estava a chave, o tempo todo.

Ela não é fácil de encontrar, mas, uma vez que nos damos conta de que sempre estava ali, nunca mais desaparece. E nos tornamos imparáveis.


Sem perder tempo, destranco a detestável gaiola. Ergo-a por cima da cabeça e estendo as asas, doloridas, amassadas, mas muito vivas.


Muito minhas.


Tomo impulso e me lanço em direção ao céu, que hoje está azul e limpo. Passarinhos me cercam e dizem "bom dia". Dizem “parabéns". Dizem “demorou!”


Conforme sigo, os avistam. Olham para o céu, para mim, com assombro. Raiva, também. Mas não é com esses olhares que me preocupo, já aprendi que não temos como abrir os olhos de todo mundo. Se querem permanecer em suas gaiolas invisíveis e apertadas, que fiquem.


Busco minhas irmãs, que ainda estão presas em suas gaiolas. Sei que serão mais vigiadas a partir de agora, mas não tem problema. São fortes. Vão entender, descobrir a saída dentro de si mesmas. Tenho certeza disso devido à forma que me olham, com algo que não estava presente antes.


Esperança.

  • Instagram
  • LinkedIn
bottom of page