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A Cor do Mundo





Era laranja. Vermelho também. E quente.

Quente demais.

Eu toquei. Doeu. Entendi por que quem estava lá dentro bramia. Entendi por que eles fugiam. Eu queria fugir também. Minhas pernas tremiam de antecipação, querendo tomar a decisão por mim, de correr, correr o mais rápido possível, para longe dali.

Mas eu não posso, não sozinho.

De dentro do laranja, minha família grita.

Minha mãe vai e volta, entra e sai, sem dar um pio sequer. Ela não mostra, mas sei que está doendo. Eu quero ajudar, mas ela não deixa. Me joga para trás. Me diz para não atrapalhar. Mas, mesmo não entrando junto com ela, dói de ver, dói vê-la sofrendo.

Aos poucos, um a um, meus irmãos são postos ao meu redor. Eles não conseguem respirar direito. Têm machucados. Sofrem.

Estou prestes a chamar minha mãe, porque não consigo lidar com isso sozinho, não sei o que fazer, quando ouço um barulho de algo se rasgando. Eu conheço esse barulho. É madeira.

Também coberta pela coisa laranja, a madeira quebra.

Ela cai sobre a minha mãe.

Minha mãe não volta e o laranja aumenta. Meus irmãos reclamam, choram, eu choro junto.

Dessa vez, deixo minhas pernas tomarem o controle. Empurro todo mundo para longe, tentando fugir. Somos pequenos, mas ágeis, e conseguimos escapar do laranja.

Enquanto corremos, presto mais atenção àquilo que consome meu lar. É rápido e brilhante, e seria bonito, se não deixasse tanta destruição para trás. Tudo que era verde, agora está preto. Morto.

Por quê?

De onde veio?

Por que não gosta de nós?

Eu já tinha ouvido histórias sobre aquilo, mas não prestei muita atenção. É fácil ignorar o perigo, quando ele existe somente em palavras. É simples passar por cima das notícias ruins, quando acordamos com o balançar das árvores, com o sol morno nos esquentando, sob um céu azul, ouvindo o chilrear dos pássaros. É fácil. Se eu tivesse medo, bastava me acalentar no seio de minha mãe, protetora, estável.

Mas ela não está aqui. Não mais.

Meu peito aperta. A solidão oprime. O peito arde. É difícil respirar.

O mundo está cinza, marrom, laranja. Não tem mais nenhum verde. Não tem azul. Não tem vida.

Tenho dó das árvores, que não podem correr. Tão bonitas. Algumas tinham flores. Outras, frutas. Elas permanecem imóveis, aguentando, mudas, o que tiverem de sofrer. Não é culpa delas. Nem nossa. Mas está acontecendo, e não podemos impedir.

Sou o maior dos meus irmãos, então vou na frente. Éramos seis, agora, quatro. Quantos seremos amanhã?

Olho para trás. Minha irmã caiu. Não vou desistir dela. Não vou desistir de ninguém.

- Vamos, levanta - eu digo.

- Não consigo - ela responde, com a voz fraca. Está machucada, não pode correr. Coloco-a nas costas, a adrenalina disfarça o peso. Grito. Precisamos nos apressar.

Não corremos sozinhos. Toda a floresta corre. Hoje, não existe inimizade, nem fome, nem lar. Só pânico. Hoje, só existe morte.

Acima da minha cabeça, passa um pássaro. Eu o invejo. Ele pode subir bem alto, deixar os problemas para trás, até ficarem pequenininhos, vistos à distância. No entanto, acho que eu não gostaria de ser pássaro, mesmo podendo voar. Vejo as mães abandonarem seus ninhos, os filhotes ainda sem penas, sem pensar duas vezes. Será que seus corações não doem? Será que não vão chorar à noite?

Penso em minha mãe, que morreu para nos salvar, e a garganta arde, com um som sentido nascendo no fundo do meu estômago, lutando para sair. Mas não posso. Preciso ser forte. Preciso salvar o que restou da minha família.

- Não tem para onde ir! - meu irmão chora.

É verdade.

Só há laranja. Laranja, laranja, laranja. Já odeio essa cor. Não acho mais bonito. É cor de destruição. Cor de adeus.

Não podemos desistir.

- Vamos ter que pular - eu digo, sem nem acreditar nas palavras que pronuncio. É perigoso. É impossível. Somos pequenos demais.

Mas todos os caminhos estão fechados e o laranja nos persegue. A única forma de escapar é por cima. Novamente, me ressinto dos pássaros.

Falando neles, vejo três manchas negras voando em círculos pelo céu. Tento não pensar no que significam. Tento não pensar nos corpos que deixei para trás.

- Se conseguirmos passar a árvore, poderemos ver o rio - diz meu outro irmão, esperançoso. Sua respiração é ruidosa e ele para de falar para tossir.

Nos meus ombros, minha irmã ergue a cabeça.

- Vamos conseguir - diz ela.

Fui primeiro.

Minhas pernas eram maiores, mas eu tinha minha irmã nas costas. Ainda assim, conseguimos. Pulamos por cima do tronco, que já estava coberto de laranja e vermelho, avançando, sempre avançando.

- Venham! - gritei.

Um irmão pulou e caiu do meu lado. O outro não.

Conseguia ouvir ele se arrastando, tentando ao máximo alcançar o topo do tronco, que já estava todo vermelho.

Não pensei. Falei para meus irmãos que estavam no chão irem para o rio, e pulei. A madeira estalava, sofria. Seria esse o som do lamento da árvore, que perdia a sua vida? Eu chorava por ela, mesmo sem querer. Meus olhos ardiam, minha garganta ardia, meu coração ardia. Minha alma pedia por socorro, mas era eu quem fora socorrer.

- Socorro! - gritou meu irmão, seus olhos imensos de pavor. Abaixo dele, só laranja. Ao nosso redor, só vermelho.

Era o fim.

Não.

Não pra nós.

O laranja me envolvia, mas consegui puxá-lo. Ambos caímos do outro lado.

Dor. Vermelho. Laranja. Dor.

Não sei bem como, mas chegamos ao rio. Entrei na água.

Alívio.

Só queria ficar ali para sempre.

- Ajude-me - reclamou meu irmão, que tentava carregar nossa irmã, muito pesada para ele.

Puxei-a para as minhas costas de novo, mas na água era mais difícil. Escorregava. Pedi a ela que se segurasse com força, e ela me agarrou, mas ainda assim, a água a queria levar para longe.

- Não consigo respirar - reclamou meu outro irmão, o que eu tinha ajudado. Ele também estava bem machucado. O laranja acabou com sua pele.

Parecia que estávamos dentro de uma nuvem. Branca, cinza, marrom, espessa. Era o laranja que a trouxera. Ela entrava pelo nariz e grudava na garganta, fazendo-nos tossir. Já não conseguia enxergar a floresta de onde viemos, só havia nuvem.

- Precisamos atravessar o rio - decidi. Não era o ideal. O rio era enorme. Nós éramos pequenos.

Mas que escolha tínhamos?

Começamos. Não sabíamos nadar muito bem. Não éramos peixes. Queria ser um peixe. Como os pássaros, eles podiam fugir, ir bem fundo, fingir que nada estava acontecendo. Fingir que o laranja nunca existiu.

O rio era grande.

Grande demais para nós.

Não éramos os únicos a fugir pela água.

Quem tinha pernas, correra para o rio. E, se as pernas fossem longas, coisa que as nossas não eram, atravessavam mais rápido, fazendo o rio mexer mais forte. Ia e voltava. Alto. Baixo. Por cima de nossas cabeças.

Eu senti, mas não pude fazer nada.

Senti quando ela escorregou das minhas costas.

Senti quando ela foi levada para longe, rápido, tão rápido.

Quando emergi, estava sozinho. Nem sinal da minha irmã. Não apareceu sua cabeça, seu braço, seu tronco, nada voltou para sentir o ar. Em vez da nuvem, agora era água que enchia sua garganta.

Quando cheguei à outra margem, sabia que parte de mim tinha afundado no rio, para nunca mais voltar.

Acheguei-me aos meus irmãos, olhando o rio que roubara mais um de nós.

Éramos três.

Olhei para cima. Tudo marrom. Mas, por cima da nuvem, escuro. Era o final do dia. Sem forças, desabamos no chão, exaustos. Nossas peles ardiam. A garganta coçava. Os olhos estavam secos. O coração, apertado.

Dormimos.

Finalmente, paz. Conforto. Morno.

Morno.

Quente.

Quente?

- Acordem! - gritou meu irmão, confirmando que algo estava errado.

Abri um olho. Laranja. Era verdade.

- Como aquilo atravessou o rio? - meu irmão pulava ao nosso redor, forçando-nos a levantar. Com todos os músculos doendo, puis-me em pé.

Meu irmão, não.

Ele respirava com dificuldade. Sua pele estava mais machucada que a minha.

Bem mais. Toda a parte que o laranja tinha pegado estava vermelho, pingava. Sequer abriu os olhos.

- Rápido, rápido! - dizia meu outro irmão, tentando puxá-lo, junto comigo. O calor já chegava até nós. Tudo voltava a ser laranja.

Cedo demais, ele chegou.

Laranja, vermelho. Morte.

Assustado, meu irmão correu. Fugiu, tentando fugir daquele ladrão de futuros. Não o culpei.

Insisti mais um pouco. Puxei. Arrastei.

Desisti.

Eu era lento, meu irmão era pesado, ele não abria os olhos. O laranja era rápido, muito, muito mais rápido.

Eu o perdi pro laranja.

Corri.

Meu irmão me esperava mais à frente na floresta. Não falamos nada.

Éramos dois.

Só dois.

Corremos. Corremos sem rumo, o mais rápido que podíamos. Estávamos machucados, abatidos, cheios de solidão. Ela nos perseguia, tão rápida como o laranja, invisível como a nuvem. Machucava tanto quanto.

Eu pensei sobre algo que nunca me ocorrera antes. Crueldade. Não sei onde ouvi essa palavra, mas agora ela fazia sentido. Minha vida até então tinha altos e baixos, vida e morte, alegria e tristeza. Mas, essa? Essa não. Essa não fazia parte da vida. Ela podia ser evitada. Era cruel.

O que tínhamos feito para merecer isso?

Não sei quanto tempo passou. Minha garganta ardia. Sede. Meu estômago tremia. Fome.

Procuramos comida, mas não tinha. Procuramos água, achamos um lago. Bebemos até não aguentarmos mais. Parecia que teríamos paz, mas a claridade mostrava o contrário.

Não era para a noite ser clara. O laranja que fazia isso.

- Vamos - disse eu. - Precisamos continuar.

Meu irmão me ignorou.

- Vamos - repeti.

- Podemos ficar aqui - disse ele, andando para dentro do lago. - Aquilo nos alcança, mas não pode entrar dentro da água. Esperamos aqui. Esperamos passar.

- Não - eu disse. - Precisamos ir. O laranja não entra, mas a nuvem te alcança.

O calor já incomodava. Eu já ouvia as árvores sofrendo. Perdendo o verde.

- Vamos! - gritei.

Meu irmão sentou, dentro do lago.

- Eu fico.

- Não - chorei. - Por favor.

O laranja tinha nos alcançado. A nuvem também. O ar estava pesado, escuro, ruim pra respirar. Meu irmão tossiu, mas não saiu do lugar.

Comecei a recuar, o mais devagar possível.

- Por favor - falei de novo.

- Não se preocupe - tossiu meu irmão. - Vai dar certo! Aqui na água ele não pode me pegar.

Ele, não. Mas a nuvem pegou.

Fiquei o máximo possível. Fiquei até o laranja cercar o lago e a nuvem descer, até não ser possível enxergar direito.

Mas eu vi.

Eu vi quando ele caiu. Tossiu, não conseguiu respirar. Caiu.

Eu corri.

Corri, fugi do laranja, fugi da solidão. Fugi da minha família, caída, um a um. Fugi, sem ter para onde ir, porque já não havia mais lar.

Tudo doía. Respirar doía. Correr doía. Existir doía.

Só eu.

Sozinho.

O que faria agora?

Tão sozinho.

O Sol nascia, trazendo mais laranja ao mundo. Era esse o meu mundo? Laranja, vermelho, amarelo, marrom. Nada de verde, nada de azul. Um mundo destruído. Um mundo cor de laranja.

Corri, corri e corri. Corri até deixar a floresta para trás. Na verdade, já não tinha mais floresta. Atrás de mim, tinha só destruição e futuros destroçados.

Comecei a ouvir outros sons. Pássaros, saudando a manhã. Estranho. Estranho, mas bom. Muito bom!

Insetos, debaixo da terra.

Vida. Era o som de vida.

Consegui! Eu consegui vencer o laranja! Deixei-o para trás!

Eu…

Um som muito, muito alto.

Assustei-me.

Dor.

Não, não era possível. Era o laranja? Ele tinha vindo atrás de mim?

Tudo foi se esvaindo, até minha consciência. Aos poucos, tudo ficou negro.

A cor do mundo era negra.

- O que foi isso? - perguntou o homem ao seu colega, após o tiro da espingarda.

- Uma onça. Que susto! Como entrou na cidade? - respondeu o outro, indo examinar o bicho de perto.

- Vai saber… É pequena ainda. Será filhote?

- Talvez. Devia estar fugindo do fogo - disse o primeiro, arrependido de ter atirado nela. O filhote de onça estava queimado, cheio de fuligem. Aparecera com uma expressão tão assustada, que nem parecia de animal. E ele agira sem pensar.

Mal sabia ele que sofrimento não era só gente que sentia. Basta ter alma. Basta estar vivo.

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